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DEMOCRACIA QUE NÃO CHEGA AO CEP

Quando o território é capturado, o voto vira formalidade — e a cidadania, concessão precária

Por Bernardo Carvalho (*)

Os números não cabem numa manchete sem ferir a consciência: entre 2024 e 2025, o total de brasileiros vivendo em áreas com presença explícita de facções ou milícias subiu de 23,5 milhões (14%) para 31,6 milhões (19%). Quase um quinto do país acorda e vai dormir sob normas impostas por poderes paralelos. Diante disso, a pergunta soa inevitável: isso é democracia?

A resposta honesta é desconfortável. Formalmente, sim. Substantivamente, não. Democracia não se encerra no ato de votar; ela depende de um Estado que assegure liberdades, aplique a lei com justiça e mantenha o monopólio legítimo da força. Quando grupos armados cobram “taxas”, regulam horários, controlam serviços, decidem quem pode abrir o comércio e arbitram conflitos a seu modo, instala-se um déficit democrático territorial. A Constituição passa a valer por CEP; o mapa da cidadania fica esburacado.

É nesse ponto que se impõe uma mudança de chave. Reduzir o problema a “polícia versus bandido” é persistir no erro que nos trouxe até aqui. A presença policial é necessária — e deve ser inteligente, contínua e submetida a controle civil —, mas nunca será suficiente sozinha. O que resgata territórios não é ocupação de fuzil, é ocupação de vida. Escola integral que acolhe e exige; quadras, bibliotecas e centros culturais pulsando no contraturno; saúde da família no domicílio, com agentes comunitários e de endemias mapeando riscos e acompanhando pessoas; assistência social que chega antes da crise. É urbanismo que ilumina ruas, abre frentes ativas, cuida de calçadas, drena a água para prevenir enchentes e estabiliza encostas contra desabamentos. É saneamento que reduz a violência invisível das doenças. É regularização fundiária que transforma moradores em cidadãos com endereço e direitos. É coleta seletiva e manejo de resíduos que cortam receitas do crime e geram trabalho digno. É agricultura urbana e hortas medicinais conectando cuidado, renda e pertencimento. É formação técnica orientada à economia real do bairro, com microcrédito, compras públicas locais e parceria com empresas que topem investir à luz do dia. É, sobretudo, uma presença do Estado que não chega como espetáculo, mas como rotina previsível.

Segurança pública, nesse desenho, deixa de ser operação e vira projeto. O policiamento atua com base em inteligência e integração com Receita, Ministério Público e Judiciário, mirando o caixa das organizações — imóveis, combustíveis, transporte clandestino, resíduos, construção, criptos — e não apenas seu soldado raso. A justiça se torna tangível com juizados e Defensoria de portas abertas no território. A prefeitura blinda licenciamento, transporte e concessões contra captura. E tudo é medido às claras: queda anual do percentual de domicílios sob controle armado; tempo de resposta policial e de elucidação de homicídios; expansão de matrículas e redução do abandono escolar; regularização de água, luz e endereços; abertura de vagas formais e negócios legais; percepção de liberdade para denunciar e participar sem medo. Sem régua pública, trocamos promessas por retórica; com régua, trocamos retórica por entrega.

Há também um argumento econômico que não pode ser varrido para debaixo do tapete. Territórios dominados por grupos armados encarecem o crédito, deprimem valuations imobiliários, afastam marcas e empregos, alimentam a informalidade e corroem a base fiscal do município. A reconquista democrática do bairro — com polícia profissional, justiça presente e políticas urbanas e sociais consistentes — inverte o ciclo: cai a sinistralidade, cresce a circulação de pessoas, o comércio formal respira, ativos ganham liquidez e a arrecadação volta a se apoiar na legalidade. É o que chamo de alfa urbano: direitos e segurança gerando valor.

Nada disso é simples ou rápido. Exige cooperação federativa, continuidade de políticas além de calendários eleitorais, transparência radical e mãos limpas para enfrentar a economia do crime onde mais dói: no bolso. Exige também que o setor privado jogue a favor — respeitando compliance, apoiando desenho urbano seguro, investindo com metas sociais mensuráveis — e que a sociedade civil seja reconhecida como parceira, não coadjuvante.

No fim, a pergunta retorna, teimosa: a democracia chega ao seu CEP? Protege o caminho da escola? Permite empreender sem pedir licença a um poder de fato? Se ainda hesitamos para responder, sabemos o que precisa ser feito. Trocar ocupação bélica por ocupação cidadã. Substituir incursões episódicas por políticas que ficam. Fazer da Constituição não um cartaz de parede, mas uma experiência cotidiana, da porta de casa para fora.

Democracia, para merecer o nome, tem que funcionar na rua. E rua sem medo, iluminada, com escola, saúde, cultura, trabalho e justiça, é a rua onde o Estado não só chega — permanece.

(*) Bernardo Carvalho é empresário, especializado em Real Estate

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